O que sou. Sim, eu sou!
O que sou está na sala, no sofá velho de minha casa, nos travesseiros que nunca compramos para ele. O que sou, está na fé calada, como o calar na mesa de decoração na sala com santos, flores velhas e artificiais, vasos antigos, fotos importantes e também antigas, muito antigas.
O que eu sou ou viera a ser é desamor? O que eu sou está na vertigem do amor de minha mãe que inebria-me, como ouvir Caetano. O que eu sou é renegar o amor. O que eu sou está no cheiro dos lençóis de meu pai, na rede, no quintal, na grama. Ah! E na mangueira.
O que eu sou é podar a mangueira, é perder os talheres, é desorganizar os pratos, é entrar em casa em silencio e andar na ponta dos pés.
Por favor, não me arranque á mangueira. Não me venda a casa.
O que eu sou está em casa, o que eu viera a ser está nas fotografias que em parte perderam-se sem nem angustiar-se em nossa saudade. Como elas tiveram sua importância. A alegria escancarada a cada vez que recordávamos ao revê-las hoje está na caixa de papel pobre e rasgada. Que diferença hoje o faria atirá-las para fora da janela?
O que eu sou está entre elas, que hoje velhas grudando umas as outras vão-se embora.
Sou a janela velha de meu quarto, que me protege da noite, do sol e do inverno, desde que era da antiga e baixa casa com telhas de pedra.
Sou as folhas secas do cajueiro, do mamoeiro e da velha mangueira. O que sou é ver a calçada rachando, esvaindo-se com o tempo. È tomar banho na calha quando a chuva nos visitara. Está chovendo! E tão pouco eu o faço, talvez só quando me debater a cama de saudade eu venha a fazê-lo.
O que sou! Sim, eu sou e sei o que sou.
Não ter mais lápis de cor, nem meus papéis de desenho, não colorir mais a casa. Sou os quadros que nunca vendi. O armário e a cama de madeira velha e forte de meus pais. Ah! Deixe-me no quintal, não posso esquecer o quintal e muito menos a mangueira. Ai, como amo a sombra desta mangueira, amo retê-la da janela velha de meu quarto.
O que sou é desobedecer meus pais, e não ser tão presente ao meu irmão apesar de nos amarmos.
Sim! Enfim o que sou. Sou a festa que nunca fizemos, sou nunca ter nascido mais alguém na família. Nunca termos tirado uma foto todos juntos. Sou o que enfim sou. Sentarmo-nos a frente da casa, atirando olhares tristes sobre o cair da tarde. O entristecer da noite.
Acho que o que sou, está nessa alegria de saber um alfabeto. Mas de não saber a política do meu português, e mesmo assim escrever algum resquício de palavra.
Sou a alegria de receber um elogio pelo que acho que faço bem.
O que eu sou é não saber fazer poesia, não instigar com o fardo do que eu quisera ser.
Mas ainda assim sou o que está na tinta, no papel sem pauta, na música, na ausência de meus lápis de cores e de um apontador.
Na divisão. Particularidade em resguardar-se ou não a mim mesmo. O que eu sou está em quase não saber traduzir-me.
O que sou, o que cedo sendo estou, ou viera a ser está nisto.
Em quase não saber traduzir-me.
Mas sim, minha família. Não! Não vendamos a casa, minha família, nem arranquemos a mangueira. O que sou está nela, em minha cama fria e em meu violão.
Ah! Chega. O que sou está dentro de minha casa.
(Derik Fonseca)